quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Doutor Che Guevara tentou aliar revolução e avanços na área de saúde


Moacyr Scliar

Folha de São Paulo (07/10/2007)

Este 9 de outubro assinala os 40 anos da morte de uma extraordinária figura, um líder revolucionário que marcou o nosso tempo, Ernesto Rafael Guevara de la Serna, Che Guevara (Che sendo o equivalente a "você" dos argentinos, uruguaios e gaúchos). Neste texto, vamos considerar um lado pouco mencionado de Guevara, o lado médico.

Nascido (1928) em Rosario, Argentina, Ernesto descendia de uma família com origens na Espanha e na Irlanda, dois países nos quais a paixão tem cidadania. Seus pais eram pessoas cultas e engajadas politicamente: ambos opunham-se ao regime peronista que por longo tempo ficou no poder.

Aos dois anos manifestou-se no pequeno Ernesto a doença que o acompanharia por toda a vida e que partilhou com figuras famosas, como Pedro, o Grande, Charles Dickens e Marcel Proust: a asma. Uma enfermidade cuja causa ainda não é inteiramente clara; provavelmente resultou de uma combinação da hereditariedade, de alérgenos ambientais e de fatores psicológicos.
Em busca de melhores condições climáticas para o garoto, a família mudou de residência, mas Ernesto nunca se deixou abater pela doença. Tratou de praticar esporte e era um agressivo jogador de rugby, conhecido pelo apelido de "Fuser", combinação de "Furibundo" e "Serna". Também era chamado de "Chancho" (porco) porque raramente se banhava, coisa da qual se orgulhava.

Lia muito: os poemas de Pablo Neruda e os livros de aventura de Júlio Verne, Jack London e Bertrand Russell. Além disso, gostava de fotografar.
Em 1948 Guevara entrou na Universidade de Buenos Aires para estudar medicina. Por que escolheu esta profissão? Três motivos podem ser invocados: a morte da avó, Ana Lynch, a quem o jovem Ernesto era muito ligado (aliás, foi nessa época que ele desistiu da engenharia pela medicina, o que reforça o argumento); a doença da mãe, Celia de la Serna Guevara, por quem Ernesto nutria profunda afeição, que teve um câncer de mama extirpado; e a asma.
Estudante de medicina, Ernesto rapidamente desiludiu-se com o curso; não era um estudante dedicado e, numa carta à namorada Chichina Ferreyra, rotulou a profissão médica como "ridícula". Mas defendia os aspectos humanísticos e sociais da profissão, defendendo a socialização da medicina e sustentando que os leprosos deveriam ser libebrtos de seu estigma. Mais que isso: formado, trabalhou no laboratório de alergologia do dr. Salvador Pisani, que, impressionado com sua dedicação, quis contratá-lo como pesquisador.

Viagem de moto

Foi como estudante de medicina que, em 1952, Guevara empreendeu a famosa viagem pela América Latina junto com seu amigo, o bioquímico Alberto Granado. Tripulando a motocicleta La Poderosa 2, os dois partiram para a jornada que depois Guevara narraria nos 'Diários da Motocicleta', ponto de partida para o filme de Walter Salles.
Essa viagem foi, para o jovem estudante, um verdadeiro rito de passagem; já influenciado pela literatura marxista e impressionado pela pobreza e pela marginalização que via, Guevara convenceu-se de que só a revolução armada mudaria o destino da América Latina. Terminando o curso médico, voltou a viajar e chegou à Guatemala à época em que o presidente eleito Jacobo Arbenz tinha empreendido uma radical reforma agrária, contrariando profundamente os interesses da United Fruit e de outras multinacionais que até então controlavam as chamadas "repúblicas bananeiras".

Para Guevara a Guatemala representava uma espécie de estágio para que ele se tornasse um verdadeiro revolucionário. Tentou conseguir um emprego público como médico, sem êxito; fez então contato com um grupo de cubanos ligados a Fidel Castro, que ele já tinha encontrado na Costa Rica; e ali também passou a ser conhecido como Che, por causa do uso constante que fazia dessa expressão. Arbenz foi derrubado por um golpe apoiado pela CIA, e Guevara conseguiu escapar para o México, agora convencido de que só uma revolução socialista poderia enfrentar o imperialismo americano.
No México, Guevara encontrou Fidel e Raul Castro e juntou-se ao Movimento 26 de Julho, cujo propósito era derrubar o governo de Fulgencio Batista. Ele deveria ser o médico do grupo, mas também recebeu treinamento militar. Em 1956, a bordo do iate Granma, o grupo dirigiu-se para Cuba. Tão logo desembarcaram na ilha, foram atacados pelas tropas de Batista, que mataram cerca da metade dos revolucionários.

Durante o confronto, Guevara largou sua mochila com material médico para pegar uma caixa de munições que um companheiro deixara cair; algo que ele viu como uma transição da sua situação de médico para a de combatente. Os poucos revolucionários que sobreviveram refugiaram-se nas montanhas de Sierra Maestra, dando início à guerrilha que por fim conquistaria o poder em Cuba.

A essa altura, Guevara já era um duro e implacável comandante militar; não hesitava em mandar executar informantes ou desertores. A guerrilha tomou o poder, Guevara assumiu o comando do quartel de La Cabaña e aí de novo mandou executar dezenas de colaboradores de Batista. Mais tarde tornou-se presidente do Banco Nacional de Cuba. Como parte de suas funções ele tinha de assinar as cédulas, o que o fazia com o seu apelido, "Che". Mas a sua inquietude revolucionária persistia. Desde 1959 ajudou a organizar expedições revolucionárias em vários países. Tratava-se de pequenos grupos de guerrilheiros que serviriam como foco de insurreição nacional: a doutrina do "foquismo".

E a revolução não se restringiria à política ou à economia. Tratava-se de criar um novo homem ("hombre nuevo"), capaz de construir o Estado socialista.
Àquela altura já estava se tornando uma figura lendária; no final de 1964 viajou para Nova York, onde foi recebido como um herói revolucionário, e não só pelos grupos de esquerda; os Rockefeller convidaram-no para jantar.

Veio então a crise dos mísseis, instalados em Cuba pelos soviéticos (e que, em caso de conflito, dizia Guevara, seriam usados contra os EUA). Tensa situação, que quase levou o mundo a uma terceira grande guerra. Por fim o premiê Khruschov, da URSS, retirou os mísseis sem consultar Castro, o que deixou Guevara muito cético acerca da linha ideológica e estratégica dos soviéticos.

Por razões que até hoje não são bem claras, ele desapareceu, segundo Castro para continuar a luta revolucionária em lugar que o premiê cubano se recusou a revelar. O primeiro lugar em que Guevara promoveu 'focos' revolucionários foi na África, mais precisamente no Congo. Não deu certo. Meses mais tarde, a asma atormentando-o sem cessar, deixou a África, resumindo sua aventura numa frase: 'É a história de um fracasso'.

Seguiu então para a Bolívia, onde, de novo, sua trajetória foi um desastre; não recebeu ajuda dos revolucionários locais, os quais não tratava de maneira muito hábil, e tinha poucos recursos para suas operações. Ocorreu então um curioso incidente: ele encontrou um grupo de soldados bolivianos feridos e ofereceu-lhes cuidados médicos, o que foi recusado. A asma agravava-se; várias das ofensivas que desencadeou tinham como objetivo obter remédios. Por fim, a 8 de outubro de 1967, foi capturado e, no dia seguinte, executado por ordem do presidente da Bolívia, o general René Barrientos. Após sua morte transformou-se numa figura icônica. A foto que Alberto Korda dele tirou pode ser encontrada em qualquer lugar do mundo e vezes sem conta foi reproduzida em cartazes, camisetas, bonés.

Numa palestra realizada em 1960 e dirigida a soldados cubanos, Guevara propõe-se a responder a uma dupla pergunta: como se pratica uma medicina revolucionária? Como se compatibiliza objetivos profissionais com objetivos revolucionários?
Em primeiro lugar, diz ele, é preciso revisar a trajetória pessoal (um processo que o comunismo conhecia como autocrítica), por onde o médico revolucionário chegará à obrigatória conclusão de que o passado tem de ser descartado.

Da mesma maneira deverá mudar a medicina. O governo revolucionário tem de prover serviços de saúde pública para o maior número possível de pessoas, instituir um programa de medicina preventiva e orientar o público para práticas higiênicas. Isto não significa, apressa-se a acrescentar, sufocar a iniciativa individual; ao contrário: talentos pessoais devem ser estimulados, mas orientados para a medicina social.

Função pedagógica

O médico deve inclusive exercer funções pedagógicas, ensinando ao povo como diversificar seus alimentos por meio da agricultura; e deve ter funções políticas, o que, para Guevara, significa ouvir a população, interagir com ela, aprender. Há um inimigo comum, o governo norte-americano, e contra ele os cubanos devem se unir, assim como devem se unir a outros povos, mesmo que haja alguma diferença em termos de organização dos países (ou seja: mesmo quem não é socialista pode fazer parte da aliança contra o inimigo). Se for preciso lutar, o médico cumprirá funções de soldado e de revolucionário, mas sem deixar a medicina, sem cometer, diz Guevara, o erro que cometemos em Sierra Maestra, em que o médico estava ansioso por combater, não cuidar de feridos.

Transformação

A medicina social, portanto, é um componente importante na transformação da sociedade. Como realizar esta transformação de forma sábia e equilibrada é o problema. Para o qual os livros de terapêutica não têm nenhuma resposta.
Da guerrilha não é difícil passar ao terrorismo, mesmo porque para muitos é apenas uma questão de nomenclatura. No Oriente Médio não são raros os médicos que optaram por esta forma de luta política. George Habash, líder da Frente Popular de Lbertação da Palestina, era médico, e também Ayman al Zawahiri, o número dois da Al Qaeda, e o líder do Hamas em Gaza, Mahmoud Zahar. Zahar, aliás, era médico do fundador do grupo, o xeque Ahmed Yassin, morto num ataque aéreo de Israel em 2004. Seu sucessor foi Abdel Aziz Rantisi, um pediatra, também morto pelos israelenses. O fundador do grupo Jihad Islâmica, Mohammed al-Hindi, formou-se em medicina no Cairo.

Médicos eram muitos dos guerrilheiros que lutaram contra os soviéticos no Afeganistão. Finalmente, pelo menos cinco dos oito suspeitos de abortadas tentativas terroristas em Londres e Glasgow eram médicos. Isso contraria a idéia de que terroristas são recrutados nas camadas mais pobres e mais incultas.

Na verdade, a formação superior, sobretudo em medicina, facilita a atividade terrorista. Durante anos Europa e EUA trataram de compensar a falta de profissionais por meio da 'importação de cérebros'; cerca de 37% dos médicos com prática no Reino Unido são estrangeiros. Isso facilitava o deslocamento dos médicos que haviam optado pelo terror.

MOACYR SCLIAR é médico e escritor, autor de "O Centauro no Jardim" (Cia. das Letras).

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